segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Faroeste carioca

Queria estar aqui para falar amenidades. Aliás, notícias boas não faltam. Mas nem tudo são flores. Como jornalista e especialista em Políticas Públicas de Segurança não posso ignorar os confrontos em favelas da Zona Norte do Rio, iniciados com a tentativa de invasão do Morro dos Macacos. Estou tentando até agora entender de que forma o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, pretende justificar o que ocorreu usando a frase "foi um ato desesperado dos traficantes". Desculpe, mas eu, como cidadã, não só esperava como tinha o direito de ter uma explicação plausível para o fato de a polícia saber com antecedência de que ocorreria uma tentativa de invasão da favela e não conseguir conter a ação dos criminosos e evitar mortes de inocentes.

Neste caso, ficam várias perguntas no ar. Qual foi a qualidade das informações que a Secretaria de Segurança recebeu do setor de inteligência? Elas, de fato, permitiriam às forças de segurança planejar uma ação para impedir os criminosos? A polícia dispunha dos meios necessários para isso? E mais: tem superioridade tática que permita ações preventivas desse tipo?


Sem dúvida o que mais chamou a atenção neste episódio foi o fato de um helicóptero da Polícia Militar - com seis tripulantes a bordo - ser abatido por traficantes levando à morte de três policiais e deixando outros três feridos. Essa não é primeira vez que um helicóptero da polícia é atacado por traficantes. Além disso, os criminosos possuem há tempos armamento antiaéreo.



Então, por que utilizar helicópteros com a finalidade de combate? A polícia do Rio é a única no mundo que faz esse tipo de uso. Os helicópteros devem ser usados para resgate e para monitoramento. E há explicações concretas para isso. A primeira e a principal delas - na minha opinião - é o fato de que o tiro da polícia tem que ter destino certo. As forças estatais de segurança têm um compromisso com a sociedade no exercício do mandato público. Não se pode admitir que a polícia dispare tiros a esmo como os traficantes. E os helicópteros, como bases móveis, não são 'plataformas' seguras para esse tipo de confronto.



Ao utilizar um helicóptero em confronto direto com criminosos, a polícia coloca em risco seus agentes e a população. Nesse caso específico, se o piloto não tivesse tido controle suficiente da aeronave para fazer o pouso forçado na Vila Olímpica de Sampaio, o helicóptero poderia ter caído sobre casas, prédios ou no meio da rua e a tragédia seria muito maior.



São essas as questões que a cúpula da Segurança deveria analisar para descobrir qual foi o erro na preparação para o que estava por vir e para dar satisfações à sociedade. Isso mesmo, dar satisfações. Por mais que eles abominem a ideia de ter que explicar e justificar suas decisões à população, esse é o dever do agente público.



Historicamente, as autoridades de segurança tendem a assumir uma postura arrogante, deixando nas entrelinhas que suas decisões não devem ser questionadas. Por outro lado, população se exime da responsabilidade de cobrar. Normalmente, esse papel é desempenhado pela imprensa. Essa falta de compromisso mútuo gera problemas como desmandos, uso excessivo da força e abuso de autoridade.



O policiamento é público porque pressupõe um pacto consensual entre governantes e cidadãos. A população não pode dar um "cheque em branco" para que as autoridades preencham como bem entenderem. Isso é o mesmo que jogar uma partida de futebol sem regras. Os policiais ficam "perdidos" diante da falta de procedimentos oficializados e a população fica insegura sem saber o que virá pela frente.



É por causa desse tipo de postura que nós temos de ver o governador do Rio, Sergio Cabral, afirmar a cada caso grave na área da segurança que a política do governo não vai mudar. Meu Deus do céu! Será que eles não percebem que há algo errado? Claro que não, afinal, as UPPs - Unidades de Polícia Pacificadora - são o grande sucesso deste governo. Só queria entender qual é a vantagem de expulsar traficantes de um morro e deixá-los fugir para outras favelas? Ao meu ver, é trocar seis por meia dúzia.



Agora, o clima de vingança se instalou e os próximos dias prometem ser bem violentos a julgar pela frase usada pelo chefe da Polícia Civil, Alan Turnowski: "Isso não vai ficar assim. Nunca um ataque contra a polícia ficou sem resposta". Na última vez que esse governo decidiu "se vingar" do assassinato de dois policiais militares em Oswaldo Cruz iniciou uma megaoperação no Complexo do Alemão que provocou a morte de 19 pessoas num único dia: 27 de junho de 2007. Depois disso, o conjunto de favelas passou meses ocupado pela polícia e os confrontos com traficantes se estenderam.



Pior do que a população não cobrar explicações das autoridades é legitimar ações descabidas com o uso excessivo da força e nenhuma de inteligência. Legitimar execuções. Eu confesso que não aguento mais ouvir a frase: "eu acho que a polícia tem que subir o morro e matar mesmo". Esse tipo de pensamento me irrita cada vez mais. Embora eu, cada vez mais, evite discutir com quem parece não ter a mínima noção da gravidade do que está dizendo. Às vezes, eu até tento argumentar, mas, normalmente, as pessoas que pensam assim têm uma certa dificuldade de ouvir qualquer outro tipo de opinião. São radicais e elitistas. Sim, porque você nunca ouvirá um morador de favela falando esse tipo de absurdo. E pasmem, tenho ouvido com frequência jornalistas repetindo essas frases de senso comum.




Num estado democrático de direito, esse tipo de pensamento é inconcebível. Existem leis e elas devem ser cumpridas. As ações da polícia devem ser legítimas (consentidas por todos) e legais (obedecendo às leis institucionalizadas). O Estado não tem carta branca para matar. No Brasil, não há pena de morte. A partir do momento que nós aceitamos que um criminoso seja executado em vez de preso estamos assumindo o risco também de que um dia sejamos executados se "confundidos" com criminosos. Os altos números de registros de auto de resistência (quando o criminoso supostamente reage e é morto pela polícia) mascaram execuções. Isso é de conhecimento público. Essas ações estão dentro da lei? Obviamente não.

E para percebermos como isso é grave, vou relatar um fato simples. Recentemente, voltava de uma festa com uma amiga e o irmão dela e passamos por uma blitz em Copacabana. Os policiais acharam que o carro não iria parar e, por isso, fomos abordados com certa violência. Com fuzis apontados para os nossos rostos tivemos de sair do carro e apresentar documentos. O policial nos explicou o motivo da abordagem: estavam procurando um Pegeout igual ao do irmão da minha amiga e como o carro tinha insulfilm não conseguiram ver quem estava dentro do veículo. Imagine se eles decidissem atirar? Matariam três inocentes.



Outro exemplo é o caso do menino João Roberto morto com um tiro na cabeça disparado por policiais que "confundiram" o carro da mãe dele com o de criminosos. Na ocasião, ação da polícia foi criticada. Mas se dentro do carro estivessem quatro negros (traficantes ou não) a ação teria sido considerada bem-sucedida? Provavelmente. Mas - para a surpresa de todos - tratava-se de uma família de classe média: uma mãe e dois filhos pequenos. Esse é o risco que assumimos ao legitimar ações fora da lei. Mas não é de se espantar, afinal, estamos numa sociedade que comemora mortes. Salve-se quem puder!



Ps: O que está ruim pode piorar. O Complexo do Alemão está sem policiamento há mais de um ano por motivos políticos: não atrapalhar o andamento das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Isso porque 2010 é ano de eleições. Esta situação é uma bomba-relógio prestes a explodir. Ah, isso não é uma profecia, mas uma conclusão lógica.


Este artigo foi publicado no Globo on Line: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2009/10/21/faroeste-carioca-769798034.asp#



3 comentários:

  1. Só acho que você esqueceu de falar da falência do sistema carcerário e da morosidade do Judiciário. Não estou tentando justificar o "aplauso" das mortes dos bandidos. Só acho que o problema é muito mais complexo...

    Quanto à abordagem policial aquele dia, só tenho um comentário: "deu medo. torci pra que nenhum deles tivesse o dedo frouxo". bjs

    ResponderExcluir
  2. Gata,

    De fato, eu não falei da falência do sistema carcerário (que sofre com a superlotação e não cumpre seu papel de ressocialização); da morosidade do Judiciário; nem das falhas da legislação que permitem que criminosos de alta periculosidade retornem ao convívio social.

    Sem dúvida, são problemas importantes. Não esqueci deles. Mas meu objetivo neste post era refletir específicamente sobre a atuação da polícia e sobre política de Segurança adotada pelo governo do estado.

    De qualquer forma, qual seria a solução para a superlotação dos presídios e as falhas do Judiciário? Executar bandidos? Reafirmo: o Brasil não tem pena de morte. Não seria melhor realizar mudanças na legislação penal?

    Enfim, é preciso buscar soluções para todos esses problemas que estejam de acordo com os princípios democráticos. Já estamos em uma "guerra" envolvendo traficantes e o poder público. A população já sofre demais com a violência e a criminalidade. Tudo que NÃO precisamos agora é de um governo tirano. Esse seria o pior dos mundos!

    Um beijo

    ResponderExcluir
  3. Bom, Pri

    Como especialista em Vila Isabel, sei que não consegui dormir de sexta para sábado e tive um plantão infernal no fim de semana, que ainda não acabou.

    Talvez o helicóptero servisse só para intimidação. Como se vê, não serve mais.

    Beijo,

    Cláudio

    ResponderExcluir